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“Verdade”


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"A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.


Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.


E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os dois meios perfis não coincidiam.


Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram a um lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em duas metades,

diferentes uma da outra.


Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

As duas eram totalmente belas.

Mas carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.” Carlos Drummond de Andrade



Se existe magnetismo na poesia, poderá residir no pormenor de nos agarrar às palavras e promover a reflexão sobre os pequenos detalhes da vida. Existirão dias em que essa força cativadora nos absorve o pensamento num simples exercício de decifrar o mundo, que nos impregna e rodeia.


Este poema de Carlos Drummond é um desses exemplos, abordando um tema paradoxalmente tão simples e tão complexo: a verdade. Há muitos anos, ouvia uma professora do secundário dizer algumas vezes – talvez em jeito irónico, que na altura eu não absorvia na plenitude – que a verdade é provada por validação científica até que outra validação a contrarie.


Na relação com o mundo e com os outros, cada um poderá considerar que tem a sua quota de verdade, validada por um método próprio ou coletivo, apropriando-se desse património para utilizar na comunicação e na acção. Talvez na maior parte dos conflitos exista esse património em abundância, que entra em erupção sem que se aproveite a energia criada para chegar a um ponto de entendimento. Como se, na nossa existência, fôssemos aliciados por um pensamento genérico de que é impossível coexistirem verdades, pois tal nos faria perder algo que a maior parte das vezes nem sabemos traduzir por palavras – apenas por emoções que consomem.


Nem sempre o outro lado da verdade é, necessariamente, a mentira. Por vezes, é só uma outra interpretação de um contexto ou situação vivida, interpretação, essa, que é impregnada do nosso quadro mental, das nossas experiências, expectativas, suposições, quando não de medos ou inseguranças.


A verdade não é um acontecimento aleatório; acontece num campo de realidade. Logo aqui se produz uma série de interrogações: o que é real? Como se forma o real? Qual o nosso poder e acção sobre o real?


Há dias, relia um interessante livro de Don Miguel Ruiz e, a dada altura, saltou das páginas uma frase: “Ao fazer a pergunta «O que é real» estamos a pôr em causa aquilo que julgamos saber”. É interessante, e simultaneamente inquietante, dissecar como consegue o nosso kit interno absorver informação e criar o seu próprio mapa, gerar coordenadas e, a partir disso, também encontrar formas de validar o que se entende, a dado momento, como sendo a realidade e a verdade. Talvez aí resida o cerne de desembolsarmos grandes quantidades de energia e tempo a convencer os nossos pares das nossas análises e argumentações, criando cercas altas que desejam proteger a nossa realidade e questionar a realidade que está do outro lado.


No fundo, tal como Drummond muito bem resume, é uma decisão pessoal de optar. Cabe a cada um de nós optar pelo fechamento ou pela expansão, na posse da consciência do objectivo e do impacto na decisão e na relação. Caberá a cada um de nós também perceber com o quê e com quem estamos a lidar, sabendo que existem muitas realidades e verdades norteadas por egoísmos e, mesmo, pela dissimulação e manipulação.


Expansão é uma coisa, ingenuidade é outra. Em todo o caso, o que importará é o respeito por nós mesmos e pelos outros, que, em dose abundante, deve abastecer o depósito de cada um. A verdade, por vezes, pode ser um interessante patchwork, em que cada um dá o seu “ponto” com a cor e o grafismo individual, sem discutir que ponto é mais “validado cientificamente”.


A vida pode ser um “laboratório interessante”, mas nem sempre a ciência que lhe é aplicável tem de obedecer a um método único e universal.


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.

Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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