Partir: um verbo que destrói por dentro
- Sandra Dias

- 14 de abr.
- 4 min de leitura

Há verbos que carregam consigo o peso de uma história. Um deles é o verbo partir. Começa com a doçura de quem se lança numa aventura – “eu parto para uma nova jornada” –, mas depressa se revela como o prenúncio de uma ausência – “ela partiu e não voltou mais”. Partir é, assim, um verbo dissonante. À primeira vista, parece apenas movimento: eu parto, tu partes, ele parte. Mas, quando conjugado no quotidiano das Organizações, pode revelar-se uma força silenciosa e devastadora. Às vezes, partir não significa sair; pode ser tão-somente desconectar, ceder a um estado de alheamento e/ou anomia que se vai instalando aos poucos. Um desinteresse subtil que se insinua no quotidiano até deixar de ser excepção para se tornar padrão. Quando damos por isso, o verbo já não está no singular: está conjugado por todos – e (quase) ninguém o conjuga em voz alta.
Tudo começa com o “eu”: eu parto.
Olhar para o ecrã sem ver; ouvir sem escutar. Fazer apenas o que é exigido – e nunca mais do que isso. Eu partoquando deixo de acreditar que o que faço tem impacto; percebo que a minha voz já não ecoa; torno-me espectador(a) do meu próprio trabalho. Não saio da cadeira – continuo a cumprir o horário –, mas parto por dentro. Parto porque me cansei de insistir, de acreditar, de propor. Parto porque deixei de me importar. A minha presença física engana; emocionalmente, já fechei a porta; a vontade já não habita naquelas quatro paredes.
Potencialmente, há um dia em que tu partes.
Reparas que já não reajo como antes; que já não tenho aquela centelha nos olhos; que me tornei indiferente, com um entusiasmo ausente, imerso na mecânica das rotinas. E isso contagia-te. O cansaço é transmissível. O cinismo alastra. Já não acreditas. Também tu começas a partir; reages como quem desliga um interruptor: devagar, imperceptivelmente.
Ele parte. Ela parte. Nós partimos.
Há um momento – e raramente é visível – em que a cultura de uma Organização muda.
Ele parte quando deixa de propor ideias, de levantar a mão nas reuniões, de fazer perguntas. Mantém-se na função, mas não na intenção.Ela parte quando passa a cumprir tarefas como quem atravessa um deserto: passo após passo, sem horizonte à vista. Já não reclama, já não sugere, já não se indigna. E isso devia preocupar-nos mais do que qualquer protesto.
Nós partimos quando deixamos de nos reconhecer como equipa. Quando a entreajuda e colaboração são um mero formalismo que não passa de uma intenção. Quando o “bom-dia” se diz por hábito e o “até amanhã” já não significa “até breve”, mas apenas “sobrevivi a mais um dia”. O “nós” já não significa pertença, apenas um aglomerado de pessoas que habitam um mesmo espaço sem cooperar, que entregam sem se envolver. E assim, aos poucos, nós partimos. Por dentro. Em silêncio. Uns após os outros.
A certa altura, o “nós” desintegra-se. Já não há partilha, só coexistência. Já não há construção, só manutenção. A identidade colectiva desfaz-se em rotinas solitárias.
E talvez o mais penoso seja isto: partimos aos poucos, mas sem dar por isso. Porque é fácil habituarmo-nos à ausência – mesmo quando ela acontece com todos ainda presentes.
E, então, vós – as Organizações – partis.E não por má gestão, nem sempre por falta de recursos. Partis porque deixastes de escutar, de cuidar de quem cuida; porque confundistes produtividade com presença e esquecestes-vos de medir o sentido, a motivação e a pertença. Continuais a funcionar, sim. Há reuniões, há checklists, há relatórios. Mas já ninguém acredita. Foi institucionalizada a apatia e normalizado o “assim está bom”. Foi descontinuada a pertinência de interrogar sobre o que está a acontecer, o que leva as pessoas, aos poucos, a desligar.
E, por fim, eles/elas partem.Quem são eles e elas? São os destinatários dos nossos serviços, aqueles por quem tudo deveria começar e não terminar. São as pessoas que se aproximam com expectativas, perguntas, necessidades. E que, aos poucos, se deparam com respostas automatizadas, gestos mecânicos, escuta apressada. Experienciam o vazio no acolhimento, a ausência na atenção, a pressa nos processos. Sentem que já não há compromisso, só procedimento. Que já não há cuidado, só protocolo. Que já não há sentido, só cumprimento de metas. E, assim, partem: não por má vontade, nem por ingratidão. Partem porque percebem – mesmo sem saberem explicar – que algo já não está inteiro.
E, muito frequentemente, quando partem, não o fazem sozinhos. Levam mais do que a sua presença: levam a confiança, a reputação, a utilidade social das Organizações.
O mais inquietante? Partem por uma razão simples e dura: porque nós já tínhamos partido antes. O verbo partir parece, neste contexto, ter um efeito de bola de neve. Aquilo que podia ter sido mudança, mobilização, renovação… transforma-se numa espécie de catarse silenciosa: um acumular de pequenas desistências que, juntas, desestruturam o todo. Não explode – implode. E essa implosão acontece devagar, ao ritmo do verbo conjugado no interior das pessoas: eu parto, tu partes, ela/ele parte...
Talvez ainda vá a tempo uma última conjugação – não do verbo partir, mas de outros que resgatem o vínculo e a vitalidade que lentamente fomos perdendo: Escutar. Cuidar. Pertencer. Acreditar. Reconstruir.
Porque o que destrói Organizações não é a crítica, o erro ou o conflito. É o silêncio da desistência; é o conformismo da rotina sem alma; é o momento em que todos continuam presentes, mas já ninguém está verdadeiramente lá.
Partir, afinal, pode ser também um alerta. Um sinal de que algo precisa de ser reerguido – desde dentro. Não com promessas vazias, mas com compromisso genuíno. Com espaço para que as pessoas voltem a habitar os seus papéis com sentido. Para que o “nós” volte a significar “coletivo”, “cooperação”, “causa comum”.
Que se saiba reconhecer o verbo antes da avalanche. E, com coragem, interromper-lhe o curso.
✓ Revisão de texto realizada por José Ribeiro














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