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Perdido por cem, perdido por mil


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Os provérbios e as suas mensagens, tantas vezes em modo de dicotomia. Será este o caso? Aparentemente, este provérbio traduz uma imagem de desistir e de deixar fluir até ao limite. Como se já não tivéssemos mais nada a perder…


Ir além das palavras é um exercício estimulante, pois, de uma forma ou de outra, a nossa interpretação da realidade é influenciada pelas nossas experiências, vivências, emoções, quadro mental de acção e de valores. Desafiar o que pode estar por detrás das palavras, como mera junção de letras, pode instigar a nossa imediata interpretação.


Sim, há momentos em que parece já não termos nada a perder. Talvez pelo cansaço, pela falta de mudança, pela sistemática padronização de atitudes, comportamentos e ações que acabamos por concluir que se vão manter. E, a dada altura, a nossa emoção pode desaguar no “já não tenho nada a perder”, levando-nos, por vezes, a decisões pouco reflectidas, diria, impulsivas.


O conceito de perda ou ganho é, também, carregado de dicotomia. A consciência de perder ou ganhar é complexa de medir ou de interpretar. Posso ser ingénua nesta abordagem, mas, de facto, quando por vezes perdemos em algumas situações, um pouco mais tarde chegamos à constatação de que aquela perda foi um grande ganho porque nos permitiu quebrar os grilhões e desenhar novas oportunidades. Ouvimos, muitas vezes, a expressão “não gosto de perder, nem a feijões” e, sem querer ser contundente, acredito que muita da competitividade – e alguma inflexibilidade – se vai inspirar num quadro de representações sociais em que perder é um acto de fraqueza ou de fracasso.


Feita esta reflexão, voltemos ao provérbio. Será que subentende um desistir ou um embalar de forma serena e tranquila a consciência de que se apela à sensatez para compreender que não é o momento ou o tempo para reagir, mas sim agir. E a acção, sabemos, é sempre mais ponderada que a reacção. Acredito que uma boa parte de nós já esteve em situações que percebeu que existe uma desidentificação profunda entre a nossa identidade e o contexto onde estamos inseridos no momento. Contextos, por exemplo, onde diferentes olhares e perspectivas são sancionados; onde a autonomia é nula; onde a co-responsabilidade é residual; onde a cultura organizacional pouco valoriza a orientação para as pessoas. Contextos que se consomem a si próprios numa modalidade quase autofágica. Nessas alturas, existem “caminhos”: fly, freeze, fight


Não existem “caminhos” certos ou errados: existem caminhos, e o ser humano é dotado das competências de analisar, compreender e decidir.


Será, porventura, importante que o pensamento de “perder por cem ou por mil” seja consciente e nos afaste das atitudes drásticas do “partir a corda”, do “partir a loiça toda”. Nesse momento, talvez seja a altura de olharmos o horizonte e de começar a perspectivar que a estratégia poderá passar por uma outra linha, por um outro contexto. E será, certamente, o tempo de moderar a impulsividade, de relevar, de respirar muitas vezes fundo, contar de 50 para 1, entender que o controlo tem de estar na nossa mão.


Para que um dia sejamos lembrados pela capacidade de encontrar um plano B – que demonstra coragem e resiliência – em detrimento da lembrança de que perdemos a razão pela forma como… Em relação à imagem e às narrativas que vão ser contadas no pós… Bem, sejamos realistas, haverá sempre versões diferenciadas. O que importa mesmo? A nossa versão, a nossa história, o nosso bem-estar.


“Perdido por cem, perdido por mil” como uma desconstrução positiva do que pode ser o ganho do momento e do futuro. Acima de tudo, o direito a existir e o respeito pela nossa identidade.


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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