top of page

O que podemos reflectir com "O Deus das Moscas"


O Deus das Moscas é uma obra densa que precisa de uma leitura imersiva e atenta. É tudo menos uma mera reunião de palavras construídas em frases. Tem um sentido para além do que é óbvio numa passagem dos olhos em diagonal. Escrito por William Golding, que com esta obra vence o Prémio Nobel em 1983, transporta-nos para uma realidade que urge reflectir, num quadro mais alargado do que é a natureza humana, como pensa, como se relaciona, como comunica e como age.

É um livro que nos deixa a cogitar no que pode ser o comportamento individual quando confrontado com realidades que desafiam os nossos limites. Li-o de forma a tentar simplificar e transpor os seus ensinamentos para a comunidade nos tempos complexos em que vivemos. Fico na dúvida se consegui em pleno realizar essa hercúlea tarefa. Acredito que muito ficou por interpretar e que, um dia, uma nova leitura me possa ainda surpreender.

O livro apresenta-nos, como protagonistas, diversas crianças que se encontram numa ilha depois de o avião onde seguiam se ter despenhado num local que nos descrevem: “Estamos numa ilha. Fomos ao topo da montanha e vimos água a toda a volta. Não vimos casas nem fumo, nem peugadas, nem barcos, nem pessoas. Estamos numa ilha desabitada sem quaisquer outras pessoas”.

Na condição de sobreviventes num contexto que não controlam, a história desenrola-se e faz-nos pensar no que podem ser as emoções e as acções numa conjuntura que nos desafia a cada momento. Se nos primeiros tempos tudo parece facilmente ultrapassável, o efeito prolongado de uma situação complexa poderá nem sempre abonar a favor da condição humana. E a satisfação das necessidades primárias, apontadas por Maslow nos primeiros dois níveis da pirâmide, parecem ganhar uma centralidade colossal quando, ao longo do livro, se coloca o assunto fisiológico e/ou da segurança. Um pedaço de carne ganha uma importância vital e é fonte de disputa como se de comportamento animalesco se tratasse. E a emergência do medo, como estado emocional paralisante em detrimento de protector.

Sob a metáfora de um “monstro”, pode surgir um manancial de atitudes díspares, antagónicas e sucederem comportamentos que teremos dificuldade em racionalizar e fundamentar no imediato. Relação, comunicação e liderança são conceitos tão bem explorados ao longo desta obra que retratam uma situação-limite cheia de oportunidades, que rapidamente se convertem em obstáculos e problemas. O mais irónico nesta história é que este “monstro” é criado num imaginário e facilmente replicado em modo exponencial como se os piores monstros fossem os criados no clima do medo e da incerteza. O monstro, o Deus das Moscas, nada mais é do que uma cabeça de porco espetada num pau e entregue como oferenda. Mas na cabeça de Simon, uma criança do grupo, ganha um estatuto de criatura falante dentro da sua cabeça. Talvez tenha ganho uma dimensão em todas as cabeças sem que se tenham apercebido que um possível monstro se desenvolvia nas suas acções dominadas por uma cegueira de poder, de controlar, de ascender a uma superioridade de “chefe” de tribo.

Nalguns momentos da leitura do livro é impossível desmemoriar um paralelismo com a obra de José Saramago Ensaio sobre a cegueira. A natureza humana aparece retratada em ambas sob um arquétipo de crueldade quando está em jogo a luta pela sobrevivência ou algo semelhante, em que a fronteira entre o estado racional e o irracional e animalesco pode ser tão ténue.

Nos dias que vivemos, marcados por uma volátil incerteza, este “monstro” pode ter várias faces e corporalizar-se em retratos do nosso quotidiano. ODeus das Moscas,com muita agilidade, consegue-se rever e associar à atualidade, em termos mais simbólicos e/ou mais reais, consoante a situação e análise subjacente.


O que podemos reflectir:

  • A natureza humana parece ter sempre uma espontânea forma de organização na emergência de um líder, como se só assim se conseguisse resolver as situações – “Ergueu o búzio. – Acho que devíamos ter um chefe para decidir coisas.”

  • As características visíveis que determinam a escolha de um líder nem sempre são as mais profundamente fundamentadas e, muitas vezes, são apenas expressas pelos sinais exteriores de validação – “Nenhum dos rapazes saberia justificar claramente essa preferência; o que de mais inteligente fora dito viera de Piggy, ao passo que o líder mais óbvio era Ralph [...] havia uma serenidade em Ralph que o distinguia: a estatura dele, a aparência atraente e, razão mais obscura, mas poderosa, a posse do búzio.”

  • Todos os líderes precisam de tempo para ponderar e decidir, ainda que muitas vezes o nosso impulsivo imaginário gostasse que tivessem sempre a melhor decisão em segundos – “Preciso de tempo para pensar. Não posso decidir já o que vamos fazer.”

  • As soluções e estratégias que mobilizam as pessoas que se unem em torno de um objetivo podem ser acessíveis sem que se perca o rigor e a intenção – “As melhores ideias são as mais simples. Agora que havia algo a ser feito, eles trabalharam com paixão [...] havia uma atmosfera festiva naquela congregação.”

  • Curiosamente, existe uma tendência para que qualquer agregado mais formal de pessoas se inspire e norteie pela existência de procedimentos a cumprir a bem da organização, com a natural antecipação de sanções pelo seu incumprimento – “Vamos ter regras, muitas regras. E se alguém não as cumprir...”

  • O exercício da liderança não se esgota no processo da selecção. Existirá sempre um denominador mais forte que se enraíza e valoriza com o passar do tempo. A liderança, mais do que um papel outorgado, é um processo de reconhecimento dos pares – “– Sou o chefe, fui escolhido. – Porque é que teres sido escolhido há-de fazer diferença? Só sabes dar ordens que não fazem sentido.”

  • Uma história (re)contada tem todo o potencial para rapidamente se tornar um elemento de dúvida e instabilidade, com tendência para se empolar caso não seja desconstruído – “Ele quer saber o que é que vão fazer com a coisa que parece uma cobra [...] ele agora diz que é uma fera [...] ele diz que a fera apareceu no escuro [...] veio atrás dele, depois fugiu e veio outra vez e queria comê-lo.”

  • E são muitas vezes estas “histórias” que desafiam e exasperam os líderes na sua responsabilidade – “Ralph sentia-se aborrecido e, por agora, derrotado. Parecia-lhe enfrentar algo intangível.”

  • Estabelecer prioridades quando se gerem pessoas será sempre um desafio, e é muitas vezes neste processo que emergem as questões da gestão da relação interpessoal – “Como é que querem ser salvos se não fizerem primeiro o que é mais importante e agirem como deve ser? [...] disseram que o Ralph era chefe e não lhe deram tempo para pensar. Depois, mal ele diz alguma coisa, precipitam-se logo como, como...”

  • Não é só nas histórias que as boas intenções e os maravilhosos planos desenhados em reunião nem sempre passam a uma acção concertada – “Reuniões. Adoramos reuniões, não é? Todos os dias. Duas vezes por dia. Conversamos. [...] lá estaríamos nós muito sérios, e alguém diria que devíamos contruir um avião, um submarino, ou um aparelho de televisão. Quando a reunião terminasse, trabalhariam cinco minutos e depois desapareceria tudo, ou iam caçar.”

  • A resistência às situações adversas pode ser potencialmente afectada com o passar do tempo e gerar situações menos positivas – “As coisas estão a dar para o torto. Não percebo porquê. Começamos bem, estávamos alegres. E depois [...] depois começámos a ter medo.”

  • Os olhos são tantas vezes o espelho da alma como parte visível da vida emocional interna – “Do semblante destacavam-se dois olhos azul-claros fixos, exprimindo agora frustração e prestes a evoluírem para a cólera.”

Chegar às últimas linhas desta obra deixa-nos sem fôlego de interpretação. O conjunto de acontecimentos e ações deixa-nos num limbo de reflexão – como é que crianças numa fase pueril da sua vida teriam sido capazes de protagonizar alguns comportamentos. Talvez um denominador comum tenha sido a incerteza e o medo, ingredientes muito usados em algumas circunstâncias e por algumas personagens como forma de controlar e dominar, sob a égide da protecção do “todo”.


Se os livros, ainda que num registo de ficção, têm alguma função na nossa vida, que seja a de ampliar o nosso entendimento e estado de alerta. Neste caso, a de estar atento a evidências de um qualquer “Deus das Moscas” e relembrar que o que nos torna seres únicos é a nossa Humanidade e a capacidade de sermos colaborativos em situações-limite.


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

bottom of page