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O que podemos reflectir com o "Conto da Ilha Desconhecida"



O título deste livro pode levar o nosso imaginário a gerar a ideia de que foi escrito por um autor ligado ao mundo da escrita infantil. Eu própria fui surpreendida quando, numa livraria, percorria as estantes à procura de um título que me despertasse a curiosidade. Continuei a percorrer as estantes, mas já não consegui esquecer aquele delgado livro onde os meus olhos se detiveram. Em boa hora: escrito por José Saramago, este pequeno conto é pulverizado de simbologias e simplicidade na reflexão.


O livro conta a história de um homem que “foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco”. A partir desse mote, vamos conhecendo líderes com dificuldade de escutar, laivos de egos e protagonismos, rasgos de microgestão, expressões de preconceitos, vivências de desafios e oportunidades e tantas outras dimensões que pululam a história dos mortais.


O que podemos reflectir com a leitura deste livro:

  • A liderança é uma dimensão que “dá muito trabalho” e, por isso, quando percebemos que os líderes se instalam no seu trono, distantes dos seus liderados, pouca estranheza nos causam as (re)acções. | “Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de dada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso [...], é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar.”

  • A cadeia de comando desmultiplicada, que causa entropia e perda de tempo, parece ser uma forma de organização para além das histórias de ficção, levando à dispersão, contradição, deturpação e lacunas de informação. | “Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições [...].”

  • A noção da importância do papel que cada um ocupa nos sistemas de organização pode ser uma questão de perspectiva, sendo importante reacender a consciência de que estamos conectados, que precisamos todos uns dos outros e que o statu quo pode ser, na realidade, muito subjectivo. | “Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar [...]”

  • Momentos poderão eventualmente existir em que as mudanças fazem sentido e que ser tarde, ou não, é mais uma vez uma questão de perspectiva, sendo que, às vezes, falta apenas “aquele impulso” e “aquela motivação”. | “Foi esse o precioso momento em que ela resolveu ir atrás do homem [...], pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água nunca lhe faltaria.”

  • A distração absorvente do bulício e da azáfama que nos rodeia entorpece, por vezes, a nossa capacidade de perceber que, face ao nosso objectivo, algo já está a acontecer e que bastaria praticar uma atenção plena e focar na solução em detrimento do problema. | “[...] também é deste modo que o destino costuma comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar [...]”

  • Antes de qualquer empreendimento, por mais ou menos audaz que seja, continuará a ser um ponto de ancoragem fazer as perguntas certas que nos permitem fazer uma acurada análise, antecipar riscos e prever soluções. | “[...] fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia [...].”

  • A propriedade – do que entendamos que nos pertença – é uma dimensão complexa que mescla emoção, sentimentos, necessidades e expectativas. Gostar do que nos pertence – seja tangível ou intangível – é um exercício ambíguo de destrinçar até que ponto o gostar nos tolda a clareza de ter e onde está a fronteira da harmonia. | “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.”

  • O autoconhecimento é, de igual forma, uma dimensão emaranhada que, embora foque no plano interno, parece necessitar de momentos em que saímos do nosso plano para nos vermos de uma perspectiva externa, como se nos olhássemos de fora para dentro. | “[...] Se não sais de ti, não chegas a saber quem és [...] é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós [...].”

  • A aprendizagem é um espaço-tempo de descoberta e, por vezes, estar apenas no processo de vivência e de contexto já cria as condições motivacionais de base para que a viagem comece. | “[...] como foi que aprendeste estas coisas [...] Como tu, quando disseste ao capitão do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda não estamos no mar, Mas já estamos na água [...].”

  • Olhar e reparar podem ser duas coisas distintas e poder-se-á dizer que os nossos sentidos nos iludem na selecção e análise dos estímulos, conduzindo a parcelas subjectivas da realidade. | “[...] Vê-se bem que só tem olhos para a ilha desconhecida, aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio.”

  • A linguagem é um terreno fértil e as palavras são impregnadas de significados, aos quais o nosso mundo interior está (in)conscientemente (des)atento. | “Até amanhã, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu.”

  • Os sonhos que temos quando acordados ou a dormir – ambos os estados em sentido real ou figurado – serão a realidade ou a nossa versão da realidade? A pergunta fica sempre no ar e a resposta para reflexão. | “[...] o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se veem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ela não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo.”

Este pequeno conto poderá parecer fugaz, sem que tenhamos referência do tempo e do espaço em que acontece, (des)informados se as ilhas desconhecidas existem. É, de forma despretensiosa, a história simples de um homem que apenas queria um barco para ir à descoberta da ilha desconhecida. Será, na verdade, a história de alguns de nós, que persistimos no desejo de continuar em busca do novo, da descoberta – interna ou externa –, mesmo quando ouvimos, de forma abundante, que é “disparate, já não há ilhas desconhecidas”.


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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