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O que podemos reflectir com "As Irmãs de Maria Madalena”

  • Foto do escritor: Sandra Dias
    Sandra Dias
  • 22 de mai. de 2020
  • 4 min de leitura


No filme “As Irmãs de Maria Madalena”, a ficção corporiza-se numa história em que o tempo e o espaço são reais: recuamos ao ano de 1964, ao Condado de Dublin, na Irlanda. Coincidente com uma época em que borbulhavam transformações sociais, nomeadamente para as mulheres, o realizador, Peter Mullan, caracteriza uma história, vivida por mais de trinta mil mulheres, a partir de um argumento protagonizado por quatro raparigas.

Os conventos de Maria Madalena –espalhados por toda a Irlanda, e apenas encerrados em 1996 – estavam sob a égide das freiras da Misericórdia, que, nomeadas pela Igreja Católica, se encarregavam da sua administração.

As principais personagens do filme – Crispina, Rose, Margaret e Bernardette –representam as mulheres identificadas como pecadoras: mães solteiras, mulheres abusadas sexualmente, demasiado atraentes, simples, inteligentes.

Que diferença entre estas mulheres e as outras mulheres? De acordo com Guacira Louro, “a diferença é sempre constituída a partir de um dado lugar que se torna como o centro”. E esta diferença é visível na violência simbólica da procissão anual em que as Maria Madalena saem à rua para participar, um ritual pernicioso em que a sua visibilidade é sinónimo de ensinamento para outras mulheres. Uma espécie de cidadania significativa, transformando-as numa forma de exemplo para as outras mulheres, uma manifestação pública do instituído como moral versus imoral. À sua passagem, as mulheres meneiam as cabeças...


No filme, o corpo feminino é um referente, um sinónimo de pecado punido socialmente com um duplo encarceramento: detido nos conventos e “preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (Michel Foucault)..


Que educação têm estas mulheres? Não há escola nem outra estrutura escolarizada… Apenas uma forma de educação – o trabalho! A directora do convento assume o papel de mestra – a que pune, a que socializa pela força da repressão, da humilhação, da violência física e simbólica, e que esclarece que “através do poder da oração, da limpeza e do trabalho, as pecadoras voltarão para Jesus Cristo”. A educação é o adestramento, pela força da violência e da autoridade, a aprendizagem de uma lição e a contrição diária para se livrarem do pecado.


Sempre que as freiras falam com as raparigas fazem questão de salientar a sua condição de pecadoras, recorrendo à metáfora de Maria Madalena, “ela própria pecadora da pior espécie, dando o corpo por dinheiro a debochados e pecaminosos, a salvação dos pecados só lhe veio pela penitência, ao negar-se a todos os prazeres da carne”. Ao longo de todo o filme, “a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças” (Guacira Louro).


A própria disposição dos corpos no espaço traduz uma educação de divisão e de separatismo: as freiras de um lado, as internas de outro. Nas cadências quotidianas –como, por exemplo, nas refeições – separa-as um biombo e tudo o resto: a alimentação é distinta – a fartura e as iguarias versusa escassez e o desprovimento.


À entrada, são despojadas dos seus bens e, obrigatoriamente, vestem um vestido castanho, igual para todas, sejam novas ou velhas, que as distingue sob um mesmo epíteto – o estatuto de pecadoras.


A própria definição de “cidadania” é um conceito que (re)produz várias interpretações e leituras, de acordo com o significado atribuído pelos sujeitos e pela sociedade. A construção social de cidadania está sujeita às representações e às relações de poder protagonizadas por “instâncias e autoridades [...] que, através de distintos processos, detêm legitimidade social para proclamarem a «verdade» sobre os sujeitos, para demarcarem o certo e o errado, o normal e o patológico; para decidir quem é decente ou indecente, legal ou ilegal. Discursos científicos, médicos, morais e religiosos [...] produzem esses limites e estabelecem quem está no centro e quem ocupará as margens” (Guacira Louro).


O filme explora, de forma clara, as relações de poder e dominação a partir do conceito de “género”, uma categoria socialmente construída e inculcada em função de vectores como o tempo, o lugar, as representações sociais, as perspectivas e expectativas relativamente à vivência das mulheres e dos homens.


Como todas as categorias, a sua função reside no facto de servirem como referência e ajuda para codificar e organizar a realidade que nos rodeia, tornando-se, assim, ideias comuns e partilhadas pela sociedade. No entanto, se servem para ajudar a organizar a realidade, também se podem converter em conceitos ou crenças comuns susceptíveis de nos induzirem em erro ou de deturparem a realidade, podendo levar a que as pessoas não questionem algumas dessas ideias.


A identidade das internadas é decalcada da personagem Maria Madalena, resumida à característica de ser pecadora – não se fala da sua identidade de mulher filha, mulher mãe, mulher trabalhadora, mulher crente...


Que paralelismo com os dias de hoje? Podem ser desenhados alguns esboços, uns mais ostensivos, outros mais subtis. Se terminaram os conventos de Maria Madalena enquanto espaços edificados, poderia a nossa tranquilidade ser restabelecida. Contudo, despertemos consciências para os lugares simbólicos em que remanescem ainda valores e práticas passíveis de se ancorar nas “prisões de género”. Talvez, de tempos em tempos, pela tranquilidade que se crê viver, algumas questões possam passar despercebidas e naturalizar-se.

Ainda existem lugares comuns onde a mulher vê o seu papel reduzido e cerceado. Negar esta circunstância seria afundar a cabeça na areia. E parece que sempre que se afunda a cabeça na areia e/ou se argumenta que se vivem “populismos” exacerbados se adensa mais uma parede-mestra de um convento qualquer a ser edificado ou restaurado.


Porque uma sequência de imagens vale mais que mil palavras, partilho aqui o trailer:


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

 
 
 

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