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O que podemos reflectir com "A Saga"

  • Foto do escritor: Sandra Dias
    Sandra Dias
  • 15 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de ago. de 2020


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As obras de Sophia de Mello Breyner Andresen têm uma magia inebriante, em que as palavras ganham significado vivencial. As histórias que escreveu traduzem um mundo em que as personagens vivem uma história de vida plena de experiências e de mensagens reflexivas. Creio que, em cada história, podemos encontrar uma ou outra personagem com quem nos identificamos, com pensamentos e emoções que já impregnaram, em algum momento, a nossa vida.


O conto A Saga é mais uma das obras brilhantemente redigida que nos revela a história de uma família com as suas idiossincrasias e com os seus desafios. Embora conotado com a comunidade infanto-juvenil, com espontânea agilidade pode ser lido (e apropriado) em qualquer idade e, eventualmente, algumas reflexões poderão ser mais densas nos casos em que exista uma mais ampla vivência e/ou experiência.

É uma história simbólica de coragem, determinação e força que nos apresenta um cenário de descoberta, resiliência e aprendizagem envolto em desafios. É, assim, uma viagem ao mundo interior numa história que aborda o propósito de vida, as expectativas e a influência dos outros, o desenhar de objectivos próprios e o caminho diário para os atingir, a par das dúvidas e do questionamento que cada um de nós pode sentir em dado momento da vida. Talvez uma evidência de que não existem opções certas ou erradas, mas somente opções. Em suma, espelha a vida.

O protagonista é Hans, de catorze anos, apaixonado pelo mar, sem temor das tempestades, habitante de Vig, uma ilha no mar do Norte. Da sua história fazem ainda parte o seu pai (Sören), a sua mãe (Maria) e a sua irmã (Cristina). No passado, havia perdido dois irmãos no naufrágio de um veleiro, propriedade do seu pai.

A história de Hans é, desde muito cedo, enformada pelo pai, que em modo de tentativa o procura orientar para uma vida de estudo de “leis ou medicina ou engenharia”, em Copenhaga, longe dos ofícios do mar. Mas tal não é o propósito de Hans. E essa é a história do protagonista – trilhar o seu próprio caminho de “ser capitão de um navio”, empreendendo uma fuga num cargueiro inglês, alistado como grumete, com a ideia de um dia atingir o seu objectivo: “regressar a Vig como capitão de um navio, ser perdoado pelo Pai e acolhido na casa”. A história de Hans faz-se da fuga no cargueiro, da fixação numa nova ilha e da “adopção” de Hoyle, armador e negociante no transporte de vinho para os países do Norte, que o acolheu e tratou como um filho.

É, sem dúvida, uma história densa, cheia de altos e baixos, que termina num híbrido de (in)felicidade (in)completa de um protagonista que, até ao fim dos seus dias, olhará o horizonte e sentirá o mar como o “seu caminho para casa”.


O que podemos reflectir:

  • A paixão pode ser cerceada pelas circunstâncias de contexto, mas acaba sempre por encontrar um chamamento – “A família de Hans morava no interior da ilha. Mas ele vinha muitas vezes até à pequena vila costeira e (...) ali, no respirar da vaga, ouvia o respirar indecifrado da sua própria paixão.”

  • Como os “grandes egos” tentam sublimar os corpos e os pensamentos com estratégias de minorar os seus semelhantes e como isso se pode tornar uma arquitectura das circunstâncias – “Assim é desde o tempo antigo das guerras quando os invasores que ocupavam a ilha penetravam nas casas de cabeça erguida mas exigiam que a gente da ilha se curvasse para os saudar. Então, os homens de Vig baixaram o lintel das suas portas para obrigarem o vencedor a baixar a cabeça.”

  • O silêncio que se procura instalar como uma forma de adestrar pode, em qualquer momento, transformar-se num grito ensurdecedor e gerar corpulentos perigos – “A casa e à família imprimia uma inominada lei de silêncio (...) reconhecia o risco que corria: sabia que é no silêncio que se escuta o tumulto, é no silêncio que o desafio se concentra.”

  • A boa disposição e alegria no trabalho nem sempre é interpretada pelas lideranças como um atributo valorativo, sendo muitas vezes associada a um residual brio e, como tal, passível de ser punida em praça pública – “Hans estava de pé no cais, vestido com uma pele de urso branco que encontrara no porão. No centro de um círculo, de marinheiros, que batiam palmas para marcar o ritmo, dançava e ria sacudindo uma pandeireta. (...) – Aqui não é um teatro – disse o capitão, olhando Hans na cara. (...) No porão o capitão chicoteou Hans em frente dos homens calados. No fim disse-lhe: Agora aprendeste a ter juízo.”

  • Partir em busca de novas aventuras é um processo mais seguro quando se antecipam algumas condições no sentido de gerir a expectativa do desconhecido – “Assim, diz-se, terá vagueado quatro dias, tonto de descobrimento, de espanto e de solidão. Mas ao quinto dia o seu ânimo quebrou-se. A língua estrangeira fechava em sua roda um círculo. De repente, reconheceu o seu exílio, a sua fraqueza.”

  • A compreensão e o perdão dos que nos rodeiam, quando escolhemos seguir as nossas decisões, nem sempre são uma realidade – “Hans escreveu para casa: pediu com ardor perdão da sua fuga, dizia as suas razões, as suas aventuras, o seu paradeiro (...) A resposta só veio meses depois. Era uma carta da mãe. Leu: «Deus te perdoe, Hans, porque nos injuriaste e abandonaste. Manda-me o teu pai que te diga que não voltes a Vig pois não te receberá.»”

  • Nem sempre o caminho é linearmente ancorado no objectivo inicial, pois as mudanças de contexto levam-nos a outros empreendimentos – “Hans compreendeu que, como todas as vidas, a sua vida não seria mais a sua própria vida, a que nele estava impaciente e latente, mas um misto de encontro e desencontro, de desejo cumprido e desejo fracassado, embora, em rigor, tudo fosse possível. E compreendeu que as suas grandes vitórias seriam as que não tinha desejado e que, por isso, nem sequer seriam vitórias.”

  • As reflexões que fazemos do caminho palmilhado trazem-nos, por vezes, evidências nostálgicas das nossas decisões – “Em rigor ele já não era quem era e tinha encalhado em sua própria vida. Já não era o navegador que no barco e no mar está em sua própria casa, mas apenas o viajante que por uns tempos deixou a sua própria casa aonde vai regressar.”

  • Ainda que a nostalgia se instale, a presença de energia interior e a consciência de que ainda existe caminho a percorrer podem transformar-se numa luz-guia – “No entanto parecia a Hans que algo em sua vida, embora fosse já tão tarde, era ainda espera e espaço aberto, possibilidade.”

  • Perseverar e endurecer na falta de perdão pode ser um caminho sem retorno que produz mágoas silenciosas e corrosivas – “Quando a Mãe morreu, mais uma vez escreveu ao Pai. Mas do Pai nunca veio resposta e foi então que Hans compreendeu que jamais regressaria a Vig.”

Terminámos a leitura deste breve conto com um misto de emoções. Se, por um lado, partilha uma história de coragem que evidencia que o caminho é individual, com opções e decisões alicerçadas na liberdade e responsabilidade, por outro lado partilha a inquietação de que algumas escolhas afastam de forma irreversível pessoas significativas. Sem julgar Hans pela fuga ou Sören, seu pai, pela recusa em aceitar a fuga, o ideal do mundo seria que as pessoas pudessem comunicar entre si as emoções e os sentimentos sem trancar de forma definitiva no silêncio as palavras que levariam a caminhos de entendimento e cooperação.

Nem sempre o silêncio poderá ser uma virtude quando cria um enorme mar entre pessoas que se estimam.


.Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

 
 
 

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