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O que podemos reflectir com a "História de um Caracol que Descobriu a Importância da Lentidão"



Revisitar Luis Sepúlveda é uma imersão num mundo de palavras que vão além do somatório de letras. Cada frase é plena de mensagens que conduzem, com subtileza, à reflexão sobre a natureza humana, do mundo das expectativas e da diáspora para as compreender e (em alguns momentos) cumprir.

O livro História de um Caracol que Descobriu a Importância da Lentidão surge da pergunta pueril de uma criança que, tão simplesmente, queria ver respondida a questão “muito difícil de responder – porque é tão lento o caracol?”. No início da leitura, talvez inundada pelas mesmas dúvidas do escritor, questionei-me também se seria assim tão fácil de responder, nomeadamente quando evoco um mundo onde a lentidão – real ou simbólica – parece tão estranha e difícil de aceitar, como se a única tradução de realização, de sucesso no processo e no resultado, fosse ancorada numa velocidade supersónica. Também fui lenta a ler, reflectir e escrever este breve artigo. Assimilei a mensagem e deixei-me conduzir por uma lentidão deliberada e surpreendentemente agradável.

Lê-se, nas primeiras linhas deste livro, que “num prado próximo da tua casa ou da minha vivia uma colónia de caracóis, convencidos que estavam no melhor lugar possível”. Na sua vivência, a percepção da realidade envolvente traduzia o que viam e como a sentiam, numa identidade individual uníssona, em que “entre si chamavam-se simplesmente caracol, e isto às vezes criava algumas confusões que eram ultrapassadas com lenta parcimónia”. A identidade colectiva de aceitação – “a vida é assim e não há nada a fazer” – poderia parecer apaziguadora para todos, mas “entre eles havia um caracol que, apesar de aceitar uma vida lenta, muito lenta e entre sussurros, desejava conhecer os motivos dessa lentidão”. Mas o questionamento não se limita à lentidão... estende-se à identidade numa dimensão mais profunda, pois “também não possuía um nome (tal como os restantes caracóis) e isso causava-lhe uma grande preocupação”. Este questionamento não colheu o mesmo interesse na comunidade, levando a uma jornada de descoberta individual do caracol que se viria a tornar, de forma inesperada, uma viagem de salvação da comunidade de caracóis. Algumas coisas que “acontecem por acaso” podem revelar-se, inesperadamente, de valor acrescentado, antevendo que algumas viagens empreendidas a nível individual podem configurar-se com impacto nos que nos rodeiam – “tinhas razão. Aprendeste muito na tua viagem e terás de nos guiar no êxodo.”

O que podemos reflectir com a leitura deste livro:

  • Seremos nós, humanos, conhecidos pela prática da influência do costume, dos hábitos enraizados, da rotina? | “Alguém me disse, não lembro quem, que os humanos dedicam as suas vidas a repetir coisas, movimentos e comportamentos a que eles chamam costumes – afirmou um caracol velho.”

  • Estaremos nós, humanos, preparados para aceitar e lidar com todo o tipo de perguntas sem, à partida, categorizar de forma normativa quem as faz? | “A tartaruga [...] contou-lhe que durante a sua permanência entre os seres humanos tinha aprendido muitas coisas [...] que quando um humano fazia perguntas incómodas do género ‘é preciso ir tão depressa’ ou ‘a sério que precisamos de tudo isso para sermos felizes’ era apelidado de rebelde.”

  • A auto-imagem e a autoconsciência são um domínio de maravilhosa contradição, balizada pelo que percepcionamos e pelo que aceitamos. Se a dada altura é importante sabermos quem somos, até que ponto esse conhecimento nos define numa condição eterna de aceitarmos que seremos assim até ao final da jornada, fechando a possibilidade da transformação? | “Sabiam que eram lentos e silenciosos, muito lentos e silenciosos, e sabiam também que essa lentidão e esse silêncio os tornavam vulneráveis, muito mais vulneráveis do que os outros animais capazes de se moverem com mais rapidez [...] para que a lentidão e o silêncio não os assustassem, preferiam nem falar disso e aceitavam ser como eram com uma lenta e silenciosa resignação.”

  • As memórias do vivido podem, a dado momento, tornar-se uma pesada herança na vivência do presente e na projecção do futuro, numa forma de crenças limitadoras que cerceiam a nossa capacidade de ler o mundo e agir. | “Eu conseguia voar e já não o faço [...] Todas essas árvores eram a minha casa, voava de ramo em ramo, e a lembrança dessas árvores que já não existem pesa-me tanto que deixei de poder voar.”

  • Nem sempre a curiosidade pelo novo e pela descoberta é partilhada pelas pessoas que nos rodeiam, que optam por se amparar no argumento de que sempre foi assim e, como tal, assim ficará, entronizados no poder do “costume”. | “Mas os argumentos do caracol que desejava conhecer os motivos da lentidão não despertavam grande interesse nos outros caracóis. Entre eles murmuravam que as coisas estavam bem assim [...] e que não precisavam de mais nada para serem felizes.”

  • Sermos identificados como “diferentes” nem sempre nos torna populares e pode tornar-se um dístico que, em algum momento, pode promover a exclusão da companhia dos nossos pares. | “Vamos lá ver – respondeu-lhe uma tarde um dos caracóis mais velhos, já bastante cansado das perguntas dele [...] Já chega de perguntas insensatas e, se insistires, expulsamos-te daqui.”

  • Pensar "diferente" da norma colectiva é, nalguns momentos, um acto de coragem e de perseverança, e a afirmação pessoal um processo libertador. | “Pois vou-me embora e só regressarei quando souber porque somos tão lentos e quando tiver um nome.”

  • As respostas de quem está fora do nosso contexto – e tem a percepção da realidade de outra forma – nem sempre são as mais óbvias e podem causar-nos estranheza. | “– Quero saber porque sou tão lento – segredou o caracol. – És lento por carregas um grande peso – revelou-lhe o Mocho.”

  • A voz interior, que às vezes desmotiva e coloca dúvidas, também pode ser uma voz que apazigua a alma, cabendo-nos a sua gestão. | “Pensava ele que talvez tivesse cometido um erro ao abandonar o grupo e a segurança do calicanto, mas, ao mesmo tempo, alguma coisa, uma voz que não era a sua, repetia-lhe que a lentidão devia ter algum motivo e que ter um nome [...] devia ser formidável.”

  • A ironia mordaz dos que desconhecem a realidade individual e o menosprezo inerente serão uma forma de controlo social? | “– Ao que parece não chegaste muito longe – sussurrou o um caracol velho. – Vens com fome ou com mais perguntas? – ironizou outro.”

  • Existem contextos em que aparentemente só as evidências permitem validar a informação, ainda que esta seja benéfica para todos. | “Isto é intolerável. És um rebelde e exijo-te que demonstres o que dizes; caso contrário, cala-te e vai-te embora para sempre – ameaçou-o o mais velho de todos caracóis.”

  • O exercício da liderança traz responsabilidade e, não raras vezes, o medo de que as acções possam gerar riscos para todos; por isso, digo muitas vezes que ser líder é, acima de tudo, ter mais responsabilidade em detrimento de ter mais poder. | “Nesse momento pensou que teria preferido que não fizessem porque, nesse caso, só seria responsável pelo seu próprio destino. Os caracóis confiavam nele e isso causou-lhe muito medo [...].”

  • A coragem pressupõe a aceitação do medo num processo individual de gestão das emoções. | “[...] nessa altura lembrou-se de Memória, quando ela lhe contara que um verdadeiro rebelde sente medo, mas supera-o, e lentamente, muito lentamente, continuou a avançar sobre a erva.”

  • Existem sempre, e com alguma bem-aventurança, diria eu, os que estendem o seu propósito de vida além do convencional e que inspiram pela sua forma genuína e humilde de estar. | “– Cumpriste a tua palavra. Trouxeste-nos até ao País do Dente de Leão – disse um caracol entusiasmado. – Não – começou Rebelde a dizer num murmúrio – Eu não vos trouxe. Mas nesta viagem que começou quando quis ter um nome descobri muitas coisas. Descobri a importância da lentidão e, agora, que o País do Dente de Leão, à força de tanto o desejarmos, estava dentro de nós próprios [...].”

Com destaque assinalável entre todas as reflexões que este livro pode desocultar, sobressai a legitimidade do questionamento, o direito a percorrer os caminhos insondáveis e nunca antes percorridos na busca interior das respostas, a ousadia de aceitar o medo como parte do processo, a generosidade da partilha. Na nossa velocidade, no nosso ritmo, na plena vivência do direito à nossa identidade.

E tal como Rebelde, o caracol que descobriu o seu nome e o motivo da sua lentidão, vamos precisar de muita resiliência, pois muitas serão as vozes que, em sussurro, dirão que a nossa busca é sem sentido.

Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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