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“Igual-Desigual”


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“Eu desconfiava:


todas as histórias em quadrinho são iguais.

Todos os filmes norte-americanos são iguais.

Todos os filmes de todos os países são iguais.

Todos os best-sellers são iguais.

Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.

Todos os partidos políticos são iguais.

Todas as mulheres que andam na moda são iguais.

Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais

e todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.

Todas as fomes são iguais.

Todos os amores, iguais iguais iguais.

Iguais todos os rompimentos.

A morte é igualíssima.

Todas as criações da natureza são iguais.

Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.

Todo o ser humano é um estranho ímpar. “


Carlos Drummond de Andrade


As palavras despretensiosas de um poema a relembrar a identidade individual, património tantas vezes esquecido ou sublimado. E que sentido para a identidade num mundo em veloz transformação que fomenta modelos padronizados de ter, ser e estar?!


Seria mais fácil ou conveniente sermos todos iguais? A resposta, além de complexa, pode estar densamente povoada de questionamentos.


Talvez pudesse ser mais fácil uma gestão interpessoal se fôssemos todos produzidos e criados em modo duplicado, sem que houvesse diferenças significativas na nossa forma de ser e interpretar o mundo. Seria, assim, aparentemente mais fácil gerir o contexto da aprendizagem e, mais tarde, a vida organizacional. As reuniões de equipa seriam mapeadas por um alinhamento unívoco de análise e decisão e iríamos para casa todos mais felizes. Os líderes viveriam em perfeita harmonia com os seus liderados e a paz reinaria em todas as casas. Não existiriam conflitos – dos quais se foge a sete pés – e a mudança seria, de quando em quando, apenas e tão-somente uma forma de realizar de modo diferente.


Quando coloquei a palavra “talvez” em negrito, no parágrafo anterior, foi um comportamento deliberado. Só no imaginário pueril poderia surtir efeito este “mundo cor-de-rosa” em que andaríamos todos iguais de mão dada, em fila indiana, como se de um conjunto de “serviço de chá” se tratasse.


Sem que diariamente pensemos muito sobre isto, acaba por ser desocultado que as mensagens são contraditórias. Somos encantados diariamente pelo privilégio de cada um de nós ser um mundo – a identidade é das dimensões mais valiosas da nossa existência; a mudança surge da diversidade e, muitas vezes, de a diversidade entrar em conflito. Mas o encanto facilmente se desfaz quando, no mesmo contexto, somos inundados por padrões de normalização que tendem a criar em nós um sentido único de ser e agir que escamoteiam a identidade. Exemplo disso são as tendências que o próprio mercado de oferta de produtos e serviços produz e que consumimos, com maior ou menor avidez.


Mas a realidade é outra. E ser “desigual” nem sempre é sinónimo de privilégio, sendo, pelo contrário, uma marca distintiva que, em alguns espaços e tempos, nos faz sentir que devemos rapidamente voltar ao estado “igual”. Ou isso... ou muito rapidamente ficaremos numa posição “non grata”, em que cada acção que nos é dirigida nos tentará quebrar ou torcer.


Se há coisa que o ser humano já deveria ter aprendido é que cada um é uma realidade diferente. Somos um resultado do contexto, das emoções, dos pensamentos, das acções, das escolhas, do que carregamos ou que nos carregam (sem que questionemos). Se há coisa que as Organizações já deveriam ter aprendido é esta circunstância riquíssima que deveria ser reconhecida e promovida, em vez de ser repudiada ou sancionada. E porque as Organizações são feitas de pessoas, que gerem e lideram, também estes protagonistas deveriam preencher os seus dias a orientar-se para as pessoas e a perceber em que medida podem atrair e orientar esta diversidade a favor de um bem comum, em vez de perderem tempo numa “caça às bruxas” e a planear fogueiras para as queimar.


Ser desigual é uma fonte de aprendizagem contínua para a comunidade. Ser igual é uma fonte que já secou há muito tempo e que não faz o solo brotar vida, criando uma imagem fictícia de que está tudo em conformidade.


Eu já desconfiava que ser igual não geraria abundância e mudança; as certezas são geradas dia a dia: “Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar”.


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.

Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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