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A chuva lava a pele do leopardo, mas não remove as pintas


Credits - George Turner (Photographer of the Year 2017 Top 5 Commendable Finalist)



Os provérbios, com as suas mensagens simples e directas, são um bom reminder em diversas circunstâncias da vida. Este provérbio africano vem, mais uma vez, relembrar a essência da sabedoria popular.


A chuva, aqui entendida em sentido simbólico, pode traduzir-se em muitos acontecimentos, que começam com uma ligeira queda de gotículas de água e que, não raras vezes, se convertem em dilúvios. Mais uma vez de forma simbólica, esses contextos de agreste chuva ensopam a pele, podendo transformar-se em sensações de desconforto físico e emocional. Atingirá esse ensopado de pluviosidade a nossa essência, levando-nos a perder as pintas?


A resposta a esta questão, acredito, não será única nem pacífica. Poderá depender da nossa capacidade de continuar a ver e a sentir as pintas; da nossa capacidade de procurar um abrigo, temporário ou definitivo, para nos proteger dessa chuva. Não sendo eu especialista de meteorologia, arriscaria dizer que a chuva, como fenómeno natural, não pode ser impedida de acontecer. Faz parte do ciclo e, sabemos nós, numa altura em que se fala com tanta preocupação de seca extrema, que a chuva é necessária para que a vida flua e se renove. Há momentos em que sair à rua e sentir a chuva no rosto é um momento de pura satisfação, que nos recorda o privilégio de estarmos vivos.


Não falo desta chuva renovadora que faz florir a vida e relembra, por vezes, que a Primavera está a chegar. Falo da chuva intensa, lamacenta, agreste, arrasadora que irrompe pelas nossas vidas, umas vezes pela nossa decisão e outras pela decisão abusiva de outros. Falo de contextos tóxicos em que chove todos os dias, fazendo-nos esquecer as nossas pintas e, em algumas circunstâncias, forçando-nos a assumir uma essência que não é a nossa. Independentemente da origem da chuva que nos lava a pele, acredito que temos a capacidade e, diria, a responsabilidade de perceber até que ponto essa chuva nos é benéfica, enquanto renovação e oportunidade, e quando se transforma em tóxica e ameaça. Quem tem o direito de remover as pintas além de nós mesmos?


Há semanas, escrevi sobre medos. Acredito que, mais uma vez, os medos ocupam a nossa mente nesta borrasca de emoções. Tanta literatura fala sobre o papel central das nossas emoções na nossa capacidade de receber e interpretar informação e na nossa tomada de decisão. Somos seres racionais e tremendamente emocionais. A razão é pulverizada, a cada segundo, de um manancial de emoções. Às vezes até a vergonha ou a culpa de ter pintas, como se a nossa essência fosse uma pesada herança que nos coloca em posição de sermos queimados na fogueira do juízo alheio.


Se houver um dia em que decidamos remover as pintas, que seja pela nossa decisão; que seja uma transformação e não apenas uma mudança para nos adaptarmos a um contexto que se revela insalubre. Negarmos a nossa essência é um caminho arriscado para uma vida sana– uma vida que corre veloz e que nos foi dada para tirarmos dela o melhor que pudermos.


Podemos de forma inteligente, salvaguardando a nossa sanidade, abrigar-nos aqui e ali e, de quando em quando, secar a pele para voltar a ensopá-la. Contudo, em vigilância atenta para que essa “normalidade” não nos impregne a alma e nos faça agir contra nós próprios, levando-nos a autoferir-nos para remover as pintas que incomodam os contextos onde nos movemos. Essa chuva pode fazer-nos crescer, sim, lavando-nos a pele e dotando-nos de novas formas de resiliência e superação. Mas, no dia em que essa chuva nos tirar a serenidade de espírito e nos afastar de nós mesmos, da essência que até aqui nos conduziu, poderá ser o momento de procurar novos ecossistemas onde a chuva seja menos ácida e faça brotar em vez de destruir. Pode ser o momento de procurar novas paragens onde a chuva sacuda o pó e a sujidade e faça notar as nossas pintas – não por vaidade ou presunção, mas por direito a existir tal e qual como somos.


A consciência de si e do efeito do contexto é uma âncora e, a este propósito, termino citando António Damásio: “O sofrimento proporciona-nos a melhor protecção para a sobrevivência, uma vez que aumenta a probabilidade de darmos atenção aos sinais de dor e agirmos no sentido de evitar a sua origem ou corrigir as suas consequências.”



Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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