O que podemos reflectir com “Alice no país das maravilhas”
- Sandra Dias
- 23 de abr. de 2019
- 4 min de leitura

O livro de Lewis Carroll Alice no país das maravilhas é mais do que um livro infanto-juvenil. É um mergulho sem precedentes no âmbito da gestão do tempo, das relações, das expectativas, das necessidades, da comunicação... e essas temáticas dizem muito a todos nós, independentemente da idade em que estamos posicionados. Esta obra está repleta de metáforas, numa história habitada por animais que falam, com sentido analítico e crítico. Talvez pela leveza da escrita possa ser um bom recurso para tomarmos consciência de algumas verdades fundamentais que habitam o mundo dos humanos.
A história começa quando Alice – uma menina cuja história de vida desconhecemos –, sentada ao pé da sua irmã, se sente aborrecida e se aventura. A partir daqui, vamos conhecer um Coelho Branco, cheio de pressa, outros animais peculiares, uma chave, uma porta, poções que fazem crescer e minguar e outras façanhas que tais. O icónico desta obra é que a sua primeira edição é publicada em Dezembro de 1865. Passaram tantos anos, e continua tão actual, como se o tempo e o espaço fossem apenas circunscritos a um segundo. Ou, então, apenas ao tempo de um sonho. Porque Alice viveu todas as surpreendentes aventuras num sonho: “Acorda, Alice, minha querida! – disse a irmã. – Mas que rica sesta dormiste!”
O que podemos reflectir com este livro de incursão no mundo onírico, que fala sobre as relações, a comunicação, os silêncios e os limites do que se pode ou não ser:
Somos educados e formatados para estar sempre em actividade, e por vezes parece complexo quando nada temos para fazer, como se isso fosse uma circunstância estranhamente entediante: “Alice começava a sentir-se muito cansada por estar sentada no banco, ao lado da irmã, e por não ter nada que fazer.”
O tic-tac parece ser, por vezes, o único despertador que nos faz correr mais depressa, como se apenas a confrontação com o tempo objectivo nos fizesse render às evidências: “Vou chegar tão atrasado! [...] o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, olhou para ele e começou a correr mais depressa.”
Quando em situações desafiantes, temos sempre um kit interior de conselhos que ecoa nas nossas cabeças, mas que ouvimos, por vezes, com pouca atenção, e abundantemente somos assolados por sentimentos de culpa que nos bloqueiam: “Em geral dava muito bons conselhos a si própria (embora raramente os seguisse) e, por vezes, recriminava-se severamente por as lágrimas lhe virem aos olhos.”
Não raras vezes, temos, também, uma “voz imaginária” que nos açoita: “Devias ter vergonha – disse Alice – uma menina tão crescida como tu (e bem podia dizê-lo) a chorar dessa maneira. Cala-te imediatamente!”
Caminhar sem ter uma trajectória definida é um caminho aleatório: “– Podes dizer-me como sair daqui? – Isso depende muito do sítio para onde quiseres ir – respondeu o Gato – Não me interessa muito para onde.... – disse Alice. – Nesse caso, podes ir por um lado qualquer – respondeu o Gato.”
É curioso como algumas pessoas são doutas a falar do que não sabem, mas a consciência de que são grandes pelo uso das palavras dá-lhes uma sensação pueril de poder: “Alice não fazia a mais pequena ideia do que era a latitude ou a longitude, mas achava que eram palavras bonitas e grandiosas.”
Falar e comunicar são desafios diferentes, e a interpretação será sempre uma complexa junção entre palavras, sentido e intenção com a tónica subjectiva de quem escuta: “Nesse caso, deves explicar-te quando falas – continuou a Lebre de Março. – É o que eu faço – apressou-se a responder Alice. – Pelo menos quando falo, explico-me... É a mesma coisa... – Não, não é a mesma coisa – ripostou o Chapeleiro. – Podes muito bem dizer «Eu vejo o que como», que não é a mesma coisa que «Eu como o que vejo».”
A dimensão do tempo é pessoal – diria até “intransmissível” – e desafia-nos a conhecer o nosso tempo e a forma mais eficaz de o gerir, estimando-o e prezando-o como bem escasso e valioso: “Se conhecesses o tempo tão bem como eu, não falarias em gastá-lo [...] se estiveres de boas relações com ele, deixa-te fazer quase tudo o que quiseres com o relógio.”
Comportamento gera comportamento, e todos somos responsáveis pela gestão das consequências: “Se não sabes ser educada, é preferível seres tu a acabar a história.”
Quando as circunstâncias se descontrolam, há sempre um elemento equilibrado que procura trazer a serenidade e o bom senso às decisões: “Cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe [...] O Rei pousou-lhe a mão no ombro e disse-lhe um pouco intimidado: – Reconsidera, minha querida! Ela não passa de uma criança!”
É irónico constatar que existem personagens que só têm uma forma de tratar as questões incómodas, saneando-as em vez de escutar as razões que podem estar na origem da discórdia: “A rainha só tinha uma forma de resolver as questões, quer fossem grandes ou pequenas: – Cortem-lhe a cabeça! – gritou mesmo sem olhar.”
Gerir pessoas é um desafio, pois todas gostam de ser ouvidas: “No momento em que Alice apareceu, foi chamada pelos três para resolver a questão. Repetiram-lhe os seus argumentos, mas, como falavam todos ao mesmo tempo, foi-lhes muito difícil entender o que diziam.”
Serão os “ingredientes” que se podem associar às soft skills que moldam e orientam os comportamentos? “[...] talvez seja a pimenta que põe as pessoas irritadas [...] o vinagre fá-las azedas... A camomila fá-las amargas... E o açúcar faz as crianças doces. Quem me dera que toda a gente soubesse isto: assim não seriam tão mesquinhas...”
Termino com uma significativa frase deste delicioso livro: “Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade…” para meditar que a interpretação da realidade é uma construção individual.
Podemos, se assim o desejarmos, continuar de olhos bem abertos e ter a liberdade de edificar os percursos que ambicionarmos.
✍ Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. ✓ Revisão de texto realizada por José Ribeiro
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